8.4.08

"o maltrapilho"

Final de tarde soalheira. Levantei-me de repente e decidi sair do eléctrico na paragem seguinte: Calhariz.
Fiquei a observar a Basílica da Estrela bafejada por tons alaranjados e avistada do topo da Calçada do Combro. Ainda tinha tempo: olhei em redor, 360º, sem saber por onde me apeteceria seguir... de óculos escuros.
No Largo do Camões passo por alguém que exclama:
"Com um andar assim, ou não é de cá ou julga-se alguém importante".
Sorri(-lhe) de soslaio e de olhos postos no chão mas tive de lhe ouvir ainda:
"Estou certo que pela forma como se passeia deve ser alguém importante".
Não resisti. Parei e fiz-lhe uma vénia para o deixar passar. Percebeu que fiz questão em que caminhasse à minha frente e que me guiasse o caminho (esclareci). Riso aberto e retribuiu-me a vénia. Atropelos vários dos transeuntes no passeio apertado por nossa mis en scène. Tirei os óculos escuros, olhámo-nos olhos nos olhos (os seus eram lindos, expressivos) e eu disse-lhe:
"Não sei porque diz, pensa e vê coisas em mim que eu não sinto!"
Parou, surpreendido, e riu-se.
Seguimos pelo passeio, lado a lado. Fiz questão que percebesse que agora caminhavamos juntos.
Teria quase setenta anos e carregava uma mala que parecia pesada. Convidou-me para tomar café - mas não na "Brasileira" (que não aprovava). Descemos o Chiado e algures tomamos o tal café. Falava (correctíssimamente) de tudo um pouco, o que desde logo me cativou. Contou-me a sua (extraordinária) história, que eu ouvia maravilhada. Abriu aquela senhora mala e foi tirando papeis e comprovativos vários. Estudou Direito em Pádua e mais tarde Medicina em Lisboa. Já reformado continuou a exercer voluntáriamente ambas as profissões em instituições de obra social. Escutava com enorme atenção uma vida repleta de acontecimentos nobres. Hoje, por ironia do destino e outras vicissitudes da vida, "vagabundeia maltrapilhamente" (dixit) enquanto espera justiça e restituição de seus terrenos no Guincho. Mostrou-me cópia das últimas deligências junto dos tribunais e outros documentos testemunhando seu desespero camarário.

De vez em quando olhava em volta registando os olhares atónitos de quem nos rodeava e interrompia para me dizer que nunca esperara que "alguém como eu" parasse na rua para lhe prestar atenção ou tão pouco para falar séria e atentamente sobre tudo o que já disseramos um ao outro. Respondi-lhe que ambos já tinhamos idade suficiente para sabermos que as aparências (de facto) iludem, e que quem (apenas) vê caras, naturalmente não vê corações...!
Sorriu-me muito satisfeito e continuamos a falar. Findo o café, voltamos a subir o Chiado soalheiro e as pessoas afastavam-se para nos deixar passar, entreolhando-se pelo "contraste social" que nossas vestimentas aparentavam...
Apeteceu-me responder a cada olhar perplexo ou inquisidor:
"Pois saibam vocemecezes que quem me acompanha não é "o maltrapilho" que aos vossos olhares comezinhos aparenta ser! É uma alma nobre, profundamente culta, e para vossa informação quiçà imensamente rico (assim vingue a justiça). Vêde para lá de sua excentricidade e encontreis vós mesmos tudo o que acabei de afirmar!"

Mas continuamos a subir calmamente o Chiado e os demais olhares continuaram intrigados. De acordo com as boas maneiras (de outrora), cedia-me o interior do passeio e passagem primeira. Ainda que sempre tão discreto, como ditam as regras, não pude deixar de reparar na sua extrema educação.
Acompanhou-me até São Carlos, onde eu iria assistir a mais um recital. Aprovou a minha escolha pois também conhecia a obra clássica. Pediu-me desculpa por não me poder fazer companhia "devido ao tardar da hora", disse-me piscando o olho mas apontando sua roupagem. Pisquei-lhe o olho e beijei-lhe a mão.
Silêncio entre os dois.

"Gostaria de a convidar para um dia destes partilharmos uma refeição..." (disse-me a quanto custo).
Delicadamente rabiscou um no. de telefone onde eu poderia sempre deixar resposta.
"É que é tão difícil encontrar pessoas com quem conversar longa e descontraídamente sobre tantos assuntos..."
Já em São Carlos, ouvi o recital relembrando deliciada todos os pormenores deste encontro humano e pensei: talvez um dia destes lhe telefone mesmo e porventura fará bem aos dois continuar a conversar.