4.2.08

(também) quase vinte anos depois...


Aperaltada de uma celebração que acabara mais cedo do que previra, estivera ainda em cavaqueira boémia com amigos na 'Brasileira' (do Chiado) e fazia tempo para ir a um outro jantar de cerimónia. Absorta em mim mesma, apeteceu-me ler um pouco e escolhi o refúgio confortante da 'Bertrand'. Sentei-me naquele cadeirão de canto sem notar em absolutamente mais nada para lá da distância de cada livro que folheava ou lia de relance... e assim fiquei até quase a livraria encerrar.

Saí para apanhar um táxi mas ainda não tinha chegado à esquina quando alguém (que me avistara ou me esperava à saída) atravessa a rua Garrett desde o outro lado do passeio dizendo: "A Senhora desculpe mas..."

Olhei. Reconhecemo-nos de imediato. Não escondi a surpresa e não fui capaz de conter a alegria. Abraçamo-nos. Olhamo-nos de seguida, cara a cara, sem nada dizermos. Sorrimos mútuamente e começamos a falar apressadamente, querendo contar tudo e perguntar quanto mais. Impossível. Julgo que a última vez que nos víramos fôra em 1989-90.
Vimo-nos 4, 5 ou 6 vezes na vida? De cada uma dessas vezes, espaçadas e casuísticas, o tempo parava para qualquer que fossem os nossos deveres de então pois falavamos, falavamos, falavamos e continuavamos a falar até à mesa de qualquer restaurante onde por fim nos reabastecíamos petiscando qualquer coisa!

Lembro esse último encontro, que depois de tanto falarmos, e depois de jantarmos em mais um restaurante, seguimos até sua (então nova) casa: que eu não conhecia e que ainda não me mostrara. Paredes forradas de estantes de livros, como só anos mais tarde encontrei em casa de outrém em Londres. Lembro como se agora fosse que fui tirando livros dessas prateleiras e sentados no chão continuamos a conversar sobre todo esse mundo letrado.
Sempre fomos intímos no mundo das ideias (que partilhavamos) e dos ideais (que confessavamos ou questionavamos em voz alta). Fisicamente, que eu me lembre, nunca nos envolvemos. "Não nos precipitamos a esse ponto" (julgo). A química era então canalizada de forma verbal ainda que sempre com inuendos (implícitos e explícitos)...

Por essa altura preparava-se para escrever um livro. Lembro-me de o "termos escrito" nessa mesma noite enquanto falavamos sobre todos os temas (capítulos) que pretendia abordar e incluir "nessa obra". Não dormimos a conversar. Assim sempre era.

Hoje diz-me que depois dessa data já escreveu mais de 40 livros (não percebi se todos publicados) e que desenha e pinta (tal como eu lho antevira...).
Mostrou-me o catálogo da última exposição que fez: li na contracapa o seu percurso ("de hobbie") artístico. Vi cópias de algumas das suas fotografias em exibição sobre Benares e Veneza. Aí fotografou pormenores que se alguma vez eu tivesse visitado esses mesmos lugares certamente os fotografaria também.

Falava comigo, andando em meu redor. Eu continuava parada, no mesmíssimo sítio, ainda à esquina da 'Bertrand'. Ouvia-o. Tentei responder a quanto me perguntava e deliciava-me tudo o que fomos c-o-m-u-n-i-c-a-n-d-o. Olhava-o enquanto me contava tanta coisa. Trajava a idade do Homem que já é mas fisionómicamente não envelheceu: parecia ter ainda os mesmos vinte e tal anos... Disse-lho. Riu-se e retorquio com um piropo. Corei e disse-lhe que afinal deveríamos estar a precisar de usar óculos. Rimo-nos os dois. Gargalhamos mesmo.

O telemóvel começou a fazer barulho regularmente. Não atendeu. Resmungamos e confessamos atropeladamente o quanto detestamos os ditos. Ambos só usamos telemóvel há menos de um ano, e muito contra nossa vontade. Rimo-nos de novo e apeteceu-nos deitar fora os mesmíssimos no acto.
Leu as sms, olhou para o relógio e lamentou o jantar já marcado. Perguntou-me até quando estaria por cá. Certamente não gostou do que ouviu e murmurou apenas um "logo se verá...". Deu-me o seu cartão, li que exerce funções de Adido de Imprensa algures e combinamos ir tomar um café "muito em breve" (frisou). Parou a meio da frase seguinte e insistiu em que eu lhe desse também o meu contacto telefónico. Dei. Telefonou-me de imediato, certificando-se que tinha mesmo o meu contacto... Pasmei! Piscou-me o olho e lembrou-me que eu nunca lhe dera qualquer meu contacto... Gravou o número de imediato, confirmou o nome, corrigi-o e disse-lhe o meu verdadeiro nome pela primeiríssima vez. Entreolhámo-nos... tentou beijar-me mas parou à distância de nossos narizes e da intensidade desse mesmo olhar custoso de quebrar.

Seguimos viagem: cada um para o seu jantar agendado.
Costas com costas, ele desceu e eu subi a rua Garrett.
No dia seguinte acordei com a sua primeira sms: "Como faço para te enviar um raminho de rosas ?"