bem hajas
[ouço o indescutívelmente melhor albúm de Piazolla: "Tango: Zero Hour"]
Do anonimato deste meu diário quero escrever-te. E quero que leias, enfim, o que de tantas outras formas tenho já, seguramente, tentado transmitir-te, fazer-te sentir e também acreditar, ao longo dos tempos.
Conhecemo-nos há mais de uma vintena de anos. E conhecemo-nos da melhor forma: a observar o céu com imensa paixão. Anos e anos de adolescência passados juntos a olhar pensativamente o universo...
Tantas saídas de campo em grupo, fugindo para longe da poluição luminosa das cidades, em busca do negrume da noite e maior brilho estelar. Guiavamos felizes por kilómetros de estrada - nas quais apagavamos os faróis do carro pois a luz da Via Láctea iluminava o próprio asfalto... o que já então nos quedava de espanto.
Noites e mais noites ao relento tomando notas científico-técnicas com os olhos já treinados ao escuro. Páginas e páginas de anotações, formulários internacionais contendo os nossos registos testemunhados ano após ano, de lés-a-lés do país. Lembrar que contribuíamos também por default para a representação portuguesa nessa comunidade internacionalíssima de devotos astrónomos... Deitados de costas na terra, dividíamos o céu entre todos como quem corta um bolo ás fatias. Comecávamos assim a tratar os astros por tu, aprendendo pelas cartas celestes - mapas como das nossas mãos... Belos tempos!
Parti para o estrangeiro em 1991. Mas não para longe de ti. Mantivemos sempre um contacto regular e encontrávamo-nos nesta ou naquela cidade. Já em adultos confessamos alegrias, confiamos pesares e guardamos segredos. Mas é pela Astronomia que também espiritualmente nos unimos.
Sempre que observava os céus de qualquer outra latitude, fi-lo noites inteiras lembrando do muito que também aprendera convosco. Ensinaste-me tanta coisa, especialmente em óptica de telescópios. Lembras?
Anos mais tarde, vezes sem conta (aqui confesso) tomava notas cada vez mais científico-técnicas, em tantas outras línguas que não a minha, e lembrava com saudade aquelas nossas saídas de campo... que nesses mesmíssimos instantes, e à distância do tempo e de tantos lugares, me pareciam bem mais importantes para a minha "descoberta de conhecimento".
Pensava por vezes, em português, por onde andariam todos vocês? Continuaríamos quiçá a observar o céu, à mesma hora, a partir de coordenadas de lugar diferentes? Invariavelmente vertia uma lágrima teimosa, eternecida.
Hoje fui ter contigo. De novo nos encontrámos em Lisboa. Vinhas da Faculdade, hoje Leitor de Antropologia pois já és Mestre dos Céus. Mais novo do que eu, fomos sempre tão velhos... Fugimos da cidade, direitos à tua morada. O quanto gostei de conhecer tua casa, conversar com teu Pai, e passear contigo pelas ruas da vila. A vista, por toutatis, que vista! Levaste-me a jantar fora. Não era necessário - podíamos ter cozinhado algo. Comemos "cobras" e outras iguarias. Adorei! Saímos para apanhar fresco e caminhar por entre e cima das águas, sob um esplendor nocturno em que cumprimentámos cada estrela por seu nome próprio. Rimos. Falámos depois mais sériamente, sobre o que verdadeiramente importa não descurar. Enquanto vivos. Filosofias dirão. Mas nós sabemos que assim não o é, já sentimo-lo fortemente. Partilhámos expressões que nos deram a justa medida da dôr e da força de tudo a que nos referíamos. Oiçam Senhores Deuses, pois nós não duraremos sempre.
Conheço Alguém que conhece melhor os astros do que muitas "doutas cabezas" com quem tive de trabalhar a sério. E que sabe de olhos fechados sobre os céus o que alguns só conseguem discernir com a ajuda de legendas. Tão amigos que somos e trata-me ainda respeitosamente com alguma deferência. Caminhamos abraçados, confessadamente felizes por podermos conversar tanto e sobre tanto do que nos é mentalmente vital.
Foi Pastor na juventude e até hoje faz o favor de ser meu bom Amigo. Pessoa honrada e culta. Tenho um profundo respeito por sua cabeça e sapiência de vida. Ecce Homo!
Vitruvian Man
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